quarta-feira, 9 de junho de 2010

A OCUPAÇÃO SANTO DIAS E A GEOGRAFIA URBANA

Professora Nayara*
A necessidade fundamental de consumo da sociedade em uma cidade é a moradia. A história nos mostra que no Brasil não houve um planejamento estrutural desenvolvido para a densa malha de cidades, principalmente no estado de São Paulo, para suprir a necessidade de moradia da população atraída pelos processos de urbanização e industrialização.

A dinâmica da “geração de cidades” ou da produção do espaço urbano permitiu uma configuração sócio-espacial com diferentes tipos de moradia, apresentando a contradição de um espaço que foi produzido para o consumo da população de alto poder aquisitivo convivendo com a população de baixa renda, entre eles, trabalhadores sem teto.

Os agentes produtores do espaço urbano desenvolvem a especulação imobiliária favorecendo o surgimento de loteamentos, muitas vezes deslocando a população para áreas cada vez mais distantes dos seus locais de trabalho e carentes em equipamentos urbanos.

A conseqüência desse crescimento das cidades, normalmente sem controle e com dificuldades de planejamento, atende à lógica geral capitalista e da produção do espaço urbano. Resulta em um “cenário” precário, com problemas além da diferença sócio-espacial de moradia, de infra-estrutura, promovendo, com o poder de compra, o beneficiamento de algumas áreas em detrimento de outras.

O poder de compra dos usuários define o padrão e a localização das moradias. Conseqüentemente, aos de menor poder aquisitivo restam escolhas limitadas, sendo estes, de certa forma, obrigados a residir em áreas mais prejudicadas e distantes, com menores investimentos em infra-estrutura (praças, avenidas, arborização, lazer e iluminação dessas áreas), com a ausência desses meios de consumo coletivo, tendo que se deslocar, na maioria das vezes, para trabalhar e consumir esses bens necessários para sua manutenção.

Contraditoriamente, as áreas centrais e aquelas onde habita a população de maior renda são locais melhor infra-estruturados, que possuem investimentos para uso coletivo, tanto do setor privado como público. Essa camada social é a única, de fato, representada pelo poder público, que é entendido como intermediário entre os agentes sociais, mas na maioria das vezes, representa os interesses dos segmentos de maior poder político e econômico.

Os segmentos de maior poder econômico são, naturalmente, os de maior poder político e poder público, no qual se resume em maior poder de compra, de ação, de decisão. A ação do Estado é de extrema importância para a investigação ou compreensão de reprodução territorial da cidade, concomitantemente, do seu processo de produção, na medida em que é parte constituinte da sociedade, interfere diretamente na forma e na função da cidade.

O poder público, especificamente o Estado, caracteriza-se como um elemento produtor do espaço, a partir do momento em que se apresenta como um agente regulador dessa organização espacial da cidade, visto que ele atua em diversos segmentos na construção do espaço urbano.

Nesse sentido, ao produzir o espaço urbano atua como grande industrial ao instalar, por exemplo, uma refinaria de petróleo, como consumidor de espaço e proprietário fundiário no momento em que adquire terras públicas que são reservas fundiárias que o Estado dispõe para utilizar futuramente ou negociar com outros agentes sociais que interferem na dinâmica de produção e, ainda promotor imobiliário quando adota políticas ou programas habitacionais populares contratando órgãos como a Cohab e, se tornando alvo de movimentos sociais urbanos na medida em que determina ou regula dessa forma o uso do solo urbano nas áreas da cidade (Sobre agentes produtores do espaço urbano se debruçam vários autores como Roberto Lobato Corrêa, Henry Lefevre e outros).

As políticas adotadas pelo Estado, favoreceram a atual configuração espacial, cuja produção atende diferencialmente às áreas da cidade e, sendo assim, existem diferentes formas de ocupação, que não estão de acordo com as precariedades de cada uma, mas com os interesses dos segmentos que cada uma delas ocupa ou, normalmente, da classe dominante que, a cada instante, está no poder.

Dessa forma, principalmente, a esfera do poder público municipal estabelece a segmentação social no momento em que, a partir de suas decisões, ações, valores, normas e práticas interferem consideravelmente na configuração das desigualdades sócio-espaciais expressas no espaço urbano, resultando na separação da população de baixa renda de um lado e a elite de outro, inclusive em movimentos de lutas sociais como dos trabalhadores sem teto ao observar que a habitação é um bem cujo acesso é seletivo.

De fato, a principal função das cidades é a residencial e é natural que agentes sociais, como os trabalhadores sem teto, visam, afinal de contas, o direito a habitação, consequentemente, à cidade, pois uma das principais características do espaço urbano é ser o próprio palco e objeto das lutas dos agentes sociais.

A habitação como necessidade fundamental da população, diante dos preços elevados e da especulação imobiliária, expressa de imediato uma exclusão ao direito da camada social de baixa renda.

Nesse sentido, essa exclusão resulta na organização dos trabalhadores em movimentos sociais, reivindicando o seu direito a moradia, promovendo manifestações, com a intenção de denunciar para a sociedade e para as autoridades os problemas habitacionais e de reforma agrária, como a que ocorreu em julho de 2003, em São Bernardo do Campo, entre cerca de 7 mil trabalhadores sem teto na ocupação Santo Dias.

Nesse contexto, fica nítido a pouca ação do poder local na implantação de políticas voltadas para essa camada da população quando constatamos uma ausência de projetos habitacionais, sendo que, devemos citar o que foi noticiado à época, um déficit de 50.000 moradias em São Bernardo.

O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) ocupou um terreno, na época da Volkswagen considerado abandonado há mais de dez anos, expressando a sua luta por moradia.

Nessa ocupação urbana, estavam presentes idosos, crianças, ou seja, as famílias dos trabalhadores responsáveis por esse acampamento caracterizado pela “justiça” como invasão e não como uma luta em busca de um direito legítimo por moradia digna ou simplesmente moradia. Atenta-se que esse movimento social é constituído pela camada da população de baixa renda.

Essas famílias permaneceram durante 18 dias nesse terreno passando por todo tipo de necessidade. Acorrer ao auxílio de crianças e idosos que necessitavam de assistência no tocante à saúde, a uma alimentação adequada, bem como, a melhores condições que o relento do Santo Dias, deveria ser festejado ou enaltecido por todos como uma ação nobre e não omissa por parte de alguém que recebeu mandato para isso. E pasmem, a figura em questão, ao contrário, foi condenada por uma instância de poder por essa postura ética.

Na ocasião, Aldo Santos, vereador por esse município, disponibilizou a Kombi do mandato para o transporte de idosos e crianças do acampamento para residências de parentes e, por esse motivo, foi julgado em primeira instância por suposto uso indevido de carro oficial, sendo a ação julgada improcedente, pois se tratava de um veículo público – Rés Pública - e que foi enviado para socorrer pessoas. Porém, os promotores recorreram em instância superior e condenou-o à suspensão de cinco anos dos direitos políticos e uma multa absurda.

Diante de um cenário da lógica de produção capitalista, de quantidades insuficientes de moradias e injustiças sociais, não é com condenações na justiça que veremos se modificar a realidade posta, que se expressa nos dias atuais ao observarmos nesta e em outras uma reprodução do espaço urbano voltada para construções de moradias de alto padrão em ritmo acelerado sem, contudo atacar de frente a questão social que é justamente a questão da moradia para a população de baixa renda.

Vemos, portanto, o Estado na esfera municipal, estadual e federal voltar suas ações para as camadas mais abastadas – a exemplo da canalização do córrego Saracantã duplicando a Avenida Pery Ronchet ao passo que a justiça com ações como essa, condenando um comportamento ético se encaminha para sufocar os movimentos sociais e suas lideranças mantendo este problema social sem solução.

É de se pensar a exemplo do que vimos durante o período da ditadura militar uma maior resistência dos atores e neles inseridos os lutadores em prol do direito a moradia na cidade, assim como vemos no campo mesmo com o assassinato por parte de poderosos de Chico Mendes e Dorothy Stang a luta não cessou.



*Nayara Navarro, Mestre em Geografia Urbana pela Universidade Federal de Uberlândia.

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