sexta-feira, 17 de maio de 2013

Tive a sensação que eu ia me matar


Tive a sensação que eu ia me matar
Cynthia Tavares

Do Diário do Grande ABC
Publicado em segunda-feira, 29 de abril de 2013 às 07:26

O corpo magro já sofreu na mão de torturadores que até hoje ele não lembra os nomes. Aos 75 anos, padre Emilio Rubens Chasseraux só perde o bom-humor quando recorda das cinco prisões e dos dias sombrios que passou preso na sede do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). O santista veio parar em Santo André no início da década de 1960, quando foi ordenado padre sob a bênção de um menino de rua, com uma batina emprestada. Anos depois, seria preso pelo delegado Sérgio Fleury por ser considerado subversivo. O único pecado do sacerdote era organizar os moradores da favela na Vila Palmares que buscavam melhorias de vida. O barraco onde posteriormente seria construída a Igreja era o quartel-general de discussões dos movimentos contra a ditadura. Segundo o padre, a primeira conversa sobre a fundação do PT foi na sua casa. Mas ele não gosta de falar sobre política e revelou sua decepção com o partido "que é como os outros". As cenas presenciadas nas celas do Dops ainda estão vivas na memória. O olhar marejado e distante revela as marcas na alma. O senhor que hoje inspira vida pelo sorriso admitiu que pensou em suicídio durante uma sessão de tortura. A história do padre Rubens foi a primeira a ser relatada aos pesquisadores do ‘Acorda ABC', elaborado pela Associação Centro de Memória do ABC. O trabalho pretende publicar um livro sobre os perseguidos pelo regime militar que ainda moram na região.
DIÁRIO - Quando decidiu ser padre e lidar com as questões sociais?
RUBENS CHASSERAUX - Quando criança, meu pensamento era entrar para a Marinha ou para a Aeronáutica. Achava bonito o uniforme deles e nunca pensei em ser padre. Minha família era pobre, morei em favela e também num casarão abandonado. Um dia estava jogando bola em Piratininga (interior de São Paulo) quando apareceram umas viúvas de luto (padres) e me convidaram para ir à Igreja. Chegando lá eles me falaram que estavam estudando para padre e onde eles estudavam tinha futebol, cinema e piscina. Assim fui parar no seminário sem ter condição alguma. Consegui metade (do enxoval) e fui para Botucatu em 15 de fevereiro de 1950. Tinha dez anos, não sabia direito o que queria, mas percebi que não tinha piscina, futebol e nem cinema. A piscina era do colégio vizinho, que de vez em quando podia utilizar, cinema não passava e futebol era para os bonzinhos. Comecei a perceber as injustiças.
DIÁRIO - Quais eram?
RUBENS - A gente tinha que trabalhar para comer. Era uma fazenda e precisava plantar verduras, legumes e cuidar do aviário, das abelhas para fazer mel. Não jogava bola porque não tinha tempo. Eu me calei. Percebendo isso começou a despertar minha consciência política e religiosa.
DIÁRIO - Como o sr. virou padre e veio atuar em Santo André?
RUBENS - O Papa João 23 havia publicado carta pedindo para que os seminaristas falassem aos seus superiores o que sentia. Estava fazendo Teologia em São Paulo e escrevi uma carta denunciando o que estava de errado e mandei para todos bispos do Brasil. Sabia que ia ser expulso por isso. Minha família tinha se mudado para uma favela na Vila Luzita. Chamei um colega meu (de seminário) puxa-saco e pedi que ele ligasse para o bispo de Santo André (dom Jorge Marcos de Oliveira). No outro dia vim até Santo André e disse que seria expulso da faculdade, mas que queria ser padre. Só que para isso precisaria escrever uma carta desdizendo o que falei (na carta). Daí o dom Jorge me disse que, se eu estivesse consciente do que tinha escrito, ele me aceitaria. Ele só tinha me falado para rezar e estudar. Não falou onde ia morar ou comer. Comecei a morar na Praça do Carmo. Para me manter lavava carro e engraxava sapato. Pelas janelas escutava as aulas do seminário, tomava nota. Minha batina virou cobertor. Quando me formei, ele marcou a data da minha ordenação e eu precisava arrumar dois padrinhos. Fiz jogo do palitinho com a molecada que vivia na rua comigo e um menino de 14 anos ganhou. Quando faltava quinze minutos para ordenação fui na (Rua) Coronel Oliveira Lima e arrumei uma senhora. Um padre me emprestou a batina, amarrei com uma cordinha e assim me apresentei para ser ordenado.
DIÁRIO - Foi o sr. que escolheu abrir a igreja na Vila Palmares?
RUBENS - Já conhecia a comunidade antes de virar padre e naquela época lá não havia luz e nem asfalto. O dom Jorge me disse que lá não tinha como manter um padre e eu respondi que não ia pedir nada porque lá era meu lugar. Dormia na rua, nos becos ou em São Caetano, onde não era conhecido. Trabalhava na coleta de lixo em São Caetano para me sustentar. As missas eram celebradas nas vielas.
DIÁRIO - Como o sr. foi preso pelo regime militar?
RUBENS - Comecei a organizar o povo da Vila Palmares. Entrei para a JEC (Juventude Estudantil Católica). Discutia a Bíblia com eles, sempre mostrando os seus direitos. Todo mundo começou a acreditar em mim e comecei a defender os favelados ameaçados de expulsão. Quem reclamava era taxado de comunista e terrorista. Fazíamos passeata toda terça-feira às 13h até a Praça do Carmo, onde funcionava o gabinete do prefeito, reivindicando coisas e a Polícia atrás de nós mandando parar. A ditadura não acreditava que eu era padre. Com o trabalho desenvolvido, fui convidado para dar aula em algumas escolas, o que serviu de pretexto para organizar os alunos nas minhas ideias. Ia formando grupos e tive contato com a UNE (União Nacional dos Estudantes). Levava todo mundo para fazer reunião na Igreja. No dia 1º de maio de 1968, o governador (Roberto Costa de) Abreu Sodré convocou os operários. Saímos com cinco ônibus de operários para a Praça da Sé, mas a gente errou o caminho e quando chegamos lá o povo já tinha colocado fogo no palanque.
DIÁRIO - Como foi que aconteceu sua prisão?
RUBENS - Dois dias depois dessa passeata, eu fui preso pela primeira vez. Estava pregando um crucifixo na parede quando vi um rebuliço. Diversos homens armados entraram pela porta da cozinha e eu não conhecia o delegado (Sérgio) Fleury. Eles reviraram toda minha casa, rasgaram meu sofá, procurando armas e documentos subversivos. O Fleury disse que eu tinha participado da passeata que colocaram fogo no palanque do governador. Expliquei que não e ele me disse que tinha foto minha e eu não sabia disso. Ele me levou para o alto da Vila Palmares e me perguntou a que partido eu pertencia. Daí eu respondi que apenas era da Igreja Católica e meu partido era Jesus Cristo. Depois ele perguntou qual era meu chefe e eu disse que não era índio para ter chefe. Foi quando ele me deu cotovelada e começou a escorrer lágrimas. Doeu muito. Naquele momento ele afirmou que ia acabar comigo. Fui encapuzado e o Fleury me ameaçou jogar na represa. Não sei para onde me levaram depois disso. Só sei quando desci do carro, eu pisei num chão úmido e fofo. Cheguei no Dops somente à noite. Fui levado lá para cima e passei por interrogatório. Tenho orgulho que nunca denunciei ninguém.
DIÁRIO - O fato de ficar calado irritou o delegado?
RUBENS - Sim. Depois de várias perguntas, um policial me levou para o porão do Dops. Fleury me mandou tirar a roupa e encostar no paredão, colocou uma bala no revólver, girou o tambor e engatilhou. Me jogou na cela individual, onde fiquei uns cinco dias. Depois me mandaram para uma cela com 13 presos.
DIÁRIO - E como foi a rotina com os outros detidos?
RUBENS - Eu não me identificava e até hoje não sei os nomes deles. Depois consegui com carcereiro um pedaço de pão e um pouco de vinho. Naquele chão sujo estendia um pano e celebrava a missa com eles debaixo de palavrões e vaias dos militares. Quando chegava pelas 22h, a gente dava as mãos, rezávamos juntos. Pela janela, o policial chamava quem ia subir. Era o momento de terror. A gente não sabia se ia voltar vivo ou morto. Cantávamos para dar força aos companheiros. Muitos voltavam arrebentados e outros não voltavam. Até que um dia foi a minha vez de ser chamado novamente.
DIÁRIO - Nessa hora o sr. sentiu medo?
RUBENS - Nunca senti medo. Sou medroso, mas naquela hora eu não senti medo. Parece que meu ideal era mais forte. Saí algemado da cela e uma senhora de Catanduva, camponesa e muito magra, foi algemada comigo. O filho dela pertencia à UNE e estudava em São Paulo. Abusaram sexualmente dela algemada comigo e o Fleury vendo e falando que já tinham feito aquilo com a minha mãe.
DIÁRIO - Este foi o pior momento do sr. dentro do Dops?
RUBENS - Um dia o Fleury me tirou da cela e me levou para o último andar do Dops, que dá de fundo com a estrada de ferro. Muito dormente, trilho e ferro torto. Ele me pegou pelo cabelo, encostou minha cabeça na janela e seis marmanjos ao meu redor formando um semicírculo, cada um com instrumento de tortura. O Fleury me fez olhar lá para baixo e disse para os outros militares: ‘Está vendo aquilo ali? Se eu fosse ele, me atirava daqui. Lá (embaixo) ele vai morrer espetado e não vai sentir dor. Se não, ele vai ver o que vamos fazer com ele'. Fiquei numa distância pequena da janela aberta. Os torturadores não falaram uma palavra comigo. As únicas palavras que ressoavam na minha cabeça eram as do Fleury. Foi a única vez na vida que tive a sensação que eu ia me matar. Aquele silêncio começou a pesar e eles olhando para mim nu.
DIÁRIO - Como foi o dia em que o sr. saiu da prisão?
RUBENS - Um delegado me chamou e disse que estava livre. Quando estava saindo me encontrei com o Fleury. Ele me perguntou onde eu ia e me mandou voltar. Alegou que o delegado fez isso para ver se eu estava contente e me prometeu que eu não iria sair do Dops vivo. Me colocou numa sala escura e me trancou lá. Quando foi à noite, o delegado que tinha me mandado embora perguntou o que eu estava fazendo ali e me dispensou novamente. Saí e me deu tontura porque não estava acostumado ver luz e até hoje não sei como voltei para casa em São Caetano.
DIÁRIO - Ocorreram outras prisões?
RUBENS - Fiquei um ano e cinco meses sem documento, me apresentando toda segunda-feira no Dops. Às vezes ficava lá ou passava por interrogatório. Fiquei em prisão domiciliar. Não podia sair. Eles (militares) ficaram morando no meu quarto para ver se havia alguém suspeito comigo. Teve uma vez que fui preso porque durante a missa li um texto de Isaías que falava sobre exército que iria demolir celeiros. Me levaram para a Polícia Federal de São Paulo, onde fiquei incomunicável. Perguntei porque estava preso e ele mostrou meu discurso e perguntou onde estava meu exército. Mostrei a Bíblia e ele me mandou embora falando que fui detido para uma conversa amigável. Depois ocorreram outras prisões. Tudo que acontecia no ABC, a culpa era minha. A greve dos metalúrgicos era discutida em casa, passeatas, parte da reunião da UNE foi discutida em casa.
DIÁRIO - Depois de tudo isso, o que significa a liberdade para o sr. hoje?
RUBENS - Como jovem, eu cometi muitos exageros. Tinha uma língua solta e provocava muito. Falava mal da ditadura. A primeira ideia de partido político para os operários foi na minha casa e depois fundaram o PT. Me empolguei e fazia muita campanha para eles, mas me decepcionei logo depois.
DIÁRIO - Por quê?
RUBENS - Achava que o PT ia ser um partido diferente dos outros, porque não acreditava em nenhum deles (partidos que existiam). Mas depois de pouco tempo descobri que todos eram iguais. E por isso ele tornou-se o pior de todos. Quando você confia e é traído, a pessoa passa a não ter confiança. Me afastei

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