UM
ESPECTRO RONDA A ESQUERDA
PALACIANA: O
BLACK BLOC
Celso Lungaretti (*)
A trágica derrota dos guerrilheiros devolveu a bola para o campo da luta
pacífica. E, com a chegada de Lula à Presidência da República, a revolução
praticamente foi excluída dos planos e até dos discursos da esquerda chapa
branca, cada vez mais inflada por oportunistas atraídos pela migalhas do poder.
Restava a esperança de que algum pequeno partido de esquerda repetisse a
trajetória do PT, mas sem descaracterizar-se no meio do caminho. Era o sonho do
PSOL, do PSTU, do PCO...
No más! Salta aos olhos que tal brecha histórica deixou de existir, não só em função
do formidável aparato de comunicação de que hoje a burguesia dispõe, como
também porque o PT conseguiu dilapidar o patrimônio moral acumulado pela
esquerda durante a resistência à ditadura.
Na redemocratização de 1985, éramos respeitados por nosso heroísmo e
tidos como uma reserva moral, uma alternativa à podridão capitalista; foi o que
alavancou o crescimento petista. Os 11 anos do PT no poder, contudo,
corroeram tal conceito, favorecendo a disseminação da descrença na política e
nos políticos (os quais voltaram a ser encarados, indistintamente, como farinha do mesmo saco).
Pouco importa o quanto se consigam mudar as sentenças do mensalão, o mal já está feito. Os petistas e seus aliados se preocuparam demais
em salvar pessoas, quando o que importava mesmo era salvar a imagem dos
revolucionários, não deixando que o cidadão comum passasse a desprezá-los como
desprezam os políticos convencionais.
Faltou a percepção de que a sanha reacionária não visava destruir o Zé
Dirceu e o José Genoíno atuais, mas sim o símbolo do movimento estudantil de
1968 e o símbolo da guerrilha do Araguaia, pouco importando que um e outro já
não fossem mais os homens que eram naquele passado distante.
Tratava-se de um daqueles episódios nos quais as individualidades (até
por terem cometido erros bisonhos) deveriam ser sacrificadas em nome da causa.
Não o foram, e a indústria cultural deitou e rolou com a oportunidade única,
concedida de mão beijada, de ficar desmoralizando a esquerda e seus mitos por
oito anos a fio. Sabe-se lá até quando continuará capitalizando esta incrível
lambança... O certo é que, quanto mais os condenados espernearem, mais ibope
assegurarão para o espetáculo. O show nunca termina.
Por essa e outras, hoje praticamente inexiste o voto idealista; as eleições voltaram a ser decididas pelo voto interesseiro (que amiúde chega a ser mendicante) e pelo voto útil. São os trunfos com que o PT conta para tentar quebrar o recorde do PRI:
sete décadas de permanência estéril no poder, findos os quais os trabalhadores
mexicanos continuavam tão explorados, humilhados e ofendidos como antes.
OS MASCARADOS JAMAIS CONSEGUIRÃO
IGUALAR A TRUCULÊNCIA DOS FARDADOS
Dilma mostra muita insensibilidade política ao acusar os black blocs de
não serem "democráticos", exatamente num momento em que o desencanto
com a democracia brasileira é generalizado e os três Poderes parecem estar numa
competição de quem se desmoraliza mais no menor espaço de tempo.
Quem ainda conserva um mínimo de capacidade crítica, constata a cada
momento ser o econômico o único poder que realmente conta: em torno dele
gravitam os satelizados Executivo, Legislativo e Judiciário, arrotando
independência em relação às miudezas mas submetendo-se caninamente à voz do dono nas questões que afetam os interesses maiores do grande capital.
Então, com a esquerda palaciana se distanciando cada vez mais do campo
revolucionário e alguns partidos bem intencionados desperdiçando esforços em
eleições nas quais patinam sem saírem do lugar, a esperança que resta (como
augurava há meio século o fundamental Herbert Marcuse) são os contingentes à
margem do jogo de cartas marcadas do sistema: os indignados que se mobilizam por meio das redes sociais e vêm sacudindo a
pasmaceira da política brasileira.
Alguns já mostram uma surpreendente maturidade política, elegendo
objetivos e alvos com muito discernimento, conscientes de que lhes cabe
conquistarem corações e mentes, sem fornecerem pretextos para que a imprensa
canalha os difame. É o caso, p. ex., do Movimento Passe Livre e dos
organizadores de escrachos contra os monstros impunes da ditadura militar.
Os black blocs partem para o confronto físico com os efetivos policiais e
para ações que a nossa excelentíssima presidenta coloca todas no mesmo saco de
"vandalismo", como se destruir instalações bancárias fosse algo tão
negativo quanto a atividade que nelas se desenvolve. Dilma deveria reler
Brecht: "O que importa o roubo de um banco, comparado à fundação de um
banco?".
No entanto, os mascarados jamais conseguirão igualar a truculência dos
fardados. E -lição que aprendemos amargamente nos anos de chumbo!- os jagunços
do sistema eram descartáveis e facilmente substituíveis, enquanto nós nos
enfraquecíamos a cada baixa sofrida, perdendo companheiros de valor
inestimável.
Enfim, as batalhas campais com a repressão tendem a terminar mal para o
lado dos black blocs, além de conduzi-los à prisão. Devem ser evitadas tanto
quanto possível, o que não implica cruzarem os braços diante das agressões
bestiais que os PMs amiúde desfecham sobre os manifestantes. Quando os agentes
do Estado se comportam como hordas de linchadores, é lícito, sim, defender-se
deles.
Quanto à destruição de bens, mesmo que justificada, nunca vai
transparecer como tal para o grande público, já que a imprensa burguesa a
apresentará da pior forma possível, fazendo a cabeça dos videotas. Com mais
humor e menos furor, o recado poderia ser passado sem chocar o homem comum, nem
facilitar tanto a vilificação por parte da mídia.
A atuação dos black blocs, no seu todo, deveria ser melhor dosada, pois
os excessos só favorecem o inimigo. Confio em que eles saberão extrair as
lições dos últimos episódios, efetuando as correções táticas que se impõem.
E respeito a determinação com que combatem o capitalismo, exibindo um
espírito de luta há muito inexistente em tantos esquerdistas que os vituperam,
preocupados apenas com os transtornos que poderão trazer à Copa das maracutaias e à próxima temporada de caça aos votos.
Dos primeiros, podemos esperar que amadureçam. Os segundos, em sua
maioria, já apodreceram.
* jornalista, escritor e
ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com
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